Discussão sobre horário de verão reflete importância da flexibilidade e capacidade

Analisar o histórico da adoção do horário de verão nas últimas quatro
décadas ilustra como a matriz elétrica mudou

Por Erik Rego

No último dia 16, o MME anunciou que postergará a decisão de implementação do horário de, verão para 2025, embora a NT do ONS indique que sua adoção reduziria a ponta noturna em mais de 2GW entre outubro e novembro de 2024, com economia que poderia chegar a R$ 356 milhões. Ainda assim, cria-se a expectativa de retorno em 2025, vez que se trata de uma medida que pode reduzir a demanda do leilão de reserva de capacidade em pelo menos 2 GW, trazendode economia ao consumidor R$ 1,8 bilhão por ano, segundo cálculos do Operador.

E mesmo sem seu retorno neste momento, essa discussão é mais uma evidência da aceleradatransformação da matriz elétrica nos últimos cinco anos, e consequente nova (atual) operação do sistema, em que a palavra flexibilidade se junta à capacidade no centro do debate. Nesse contexto, modernização regulatória para permitir novos modelos de negócios e avanços de mecanismos de respostas de demanda para todos os consumidores ganham relevância.

Analisar o histórico da adoção do horário de verão nas últimas quatro décadas ilustra como a matriz elétrica mudou. Em 1985, 90% da geração era suprida por hidrelétricas, com o restante oriundo de fonte térmica. Um sistema hidrotérmico em que o grosso das linhas de transmissão estava instalado nas regiões Sul e Sudeste. As hidrelétricas atendiam a todos os requisitos do sistema – das principais grandezas como energia e potência a outros requisitos pouco exigidos à época, como flexibilidade, controle de tensão e frequência, entre outros serviços ancilares.

Isso mudou com a revolução que o setor elétrico tem vivido. A inserção maciça de usinas eólicas e solares, energeticamente mais baratas do que as tradicionais, além da oferta descentralizada ter somou ao cliente tornando-se minigerador, trocando energia com a rede. E assim, a necessidade do sistema por capacidade e flexibilidade tornou-se iminente.

Em 2019, último ano de vigência do horário de verão, já se discutia inclusive se o horário de pico deveria ser alterado para o início da tarde, quando o uso de ar-condicionado era mais intenso no verão. A presença dos recursos distribuídos ainda era incipiente: a potência instalada da geração distribuída fotovoltaica somava 2,1 GW.

A edição das leis 14.120/21 (que assegurou descontos nas tarifas para uso das redes de transmissão e distribuição de energia elétrica a geradores de energia) e a 14.300 (que criou o marco da GD solar), a expansão do mercado livre e da autoprodução impulsionaram a mudança da matriz dos últimos cinco anos. A capacidade instalada no Sistema Interligado Nacional em dezembro de 2023 totalizou cerca de 215 GW, dos quais 47,1%de usinas hidrelétricas; 11,5% de termelétricas convencionais e nucleares; 62,6 GW (29,1%) de PCHs, usinas a biomassa, eólicas e solares; e 26,5 GW (12,3%) de Micro e Mini Geração Distribuída (MMGD). A transformação continuará.

No Sumário Executivo do Plano da Operação Energética (PEN 2024, ONS) – horizonte 2024- 2028, o ONS calcula que a participação conjunta das fontes solar fotovoltaica e MMGD, que em dezembro de 2023 é de cerca de 17,5%, evoluirá para cerca de 26,3% ao final de 2028. “É importante destacar que a MMGD segue elevando sua participação no atendimento à carga do SIN, notadamente em seu horário de geração máxima, e calcula-se que esta geração tende a ser cada vez maior, com impacto não somente na carga, mas também na mudança de hábito dos consumidores que optam por esse tipo de geração”, ressalta o Operador.

É nesse contexto que deve ser lida a nota técnica do ONS, disponibilizada no fim de setembro, sobre os impactos da adoção do horário de verão. A fonte solar, incluindo a MMGD, já é atualmente a segunda maior em termos de capacidade instalada do SIN. Se há cinco anos o resultado do horário de verão era inócuo, hoje o retrato é diferente. As indicações do ONS são de que, no cenário atual, o horário de verão contribui para a maior eficiência do Sistema Interligado Nacional, em especial no atendimento à ponta de carga no horário noturno, período entre 18h e 20h, quando o sistema precisa lidar com os desafios da saída da geração solar centralizada e da MMGD e o consequente aumento da demanda líquida por energia. Ainda de acordo com o relatório do Operador, a aplicação do horário de verão, em cenários de afluências críticas, poderá trazer uma redução de até 2,9% da demanda máxima. Segundo a nota técnica, a medida traria uma economia no custo da operação de até R$ 356 milhões entre os meses de outubro e fevereiro.

O horário de verão não desloca o consumo simplesmente (que era sua principal “função” até sua extinção), mas o horário da geração solar e cria mais tempo para o Operador trabalhar a rampa do sistema, no fim da tarde, quando o sol para de brilhar e os pouco mais de quatro milhões de instalações fotovoltaicas param de gerar e passam a consumir energia elétrica da rede. A discussão coincide com a retomada de um programa de resposta da demanda voltado aos grandes consumidores de energia elétrica. Em 8 de outubro, dados da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia apontam que houve redução de 260 MW no consumo de energia elétrica para suprimento no momento de ponta do sistema. O programa teve as regras aprimoradas em outubro de 2022 pela Agência Nacional de Energia Elétrica.

Cabe frisar que mecanismos de resposta da demanda precisarão ser ampliados e abranger um universo muito maior que o atual, restrito aos grandes consumidores. Hoje 60% do mercado de energia elétrica está no mercado cativo e não tem ferramentas em mãos para responder às oscilações da matriz elétrica, uma questão que ganhará importância em um momento em que as mudanças climáticas influenciarão cada vez mais o setor.

E o principal mecanismo de resposta da demanda é o correto sinal de preço, além de os consumidores cativos não conseguirem responder aos preços horários. Grande parte do mercado não percebe o custo real, mas o estimado. Essa situação pode ser minimizada com a adoção do sistema de contabilização dupla, que nada mais é do que um ajuste ao fechamento do mercado com os dados realizados. Em outras palavras, recalcula-se ex-post o preço de equilíbrio de cada hora, pela oferta e demanda real, e a diferença deste para o valor calculado na véspera é aplicada aos agentes na forma de ajuste.

Incorporar flexibilidade exigirá abarcar novos modelos de negócios em um momento em que o armazenamento ganha novas dimensões fora do Brasil com o avanço das renováveis. Estudo da Agência Internacional de Energia do início de outubro aponta que, até 2030, a participação da energia solar fotovoltaica e eólica sozinha no mix energético global deverá dobrar para 30%. A maior variabilidade trará mais oscilações nos mercados. Segundo a consultoria ICIS, os preços da eletricidade foram negativos durante 7.841 horas na Europa, somando vários de seus mercados, durante os primeiros oito meses do ano, com os preços caindo abaixo dos 20 euros por megawatt-hora em alguns casos.

Uma revolução está em curso no mundo. O Brasil precisará atuar nesse contexto para ampliar a flexibilidade da operação, criar novos modelos de negócios adaptados aos novos tempos, um modelo de formação de preços mais aderente à realidade da operação, mecanismos de resposta da demanda.

Erik Rego é coordenador do Centro de Inovação para Transição Energética (ETIC) da Poli-USP, onde também leciona. Foi diretor de estudos de energia elétrica da Empresa de Pesquisa Energética entre 2019 e 2022.

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